Matéria publicada na Revista Campo Vivo – Edição 45 – Dezembro 2020
Exemplos de famílias rurais mostram que o diálogo e planejamento são essenciais para a continuidade dos negócios no campo
Ao contrário do que muitas pessoas pensam a sucessão familiar não é simplesmente realizar a transferência de um patrimônio sem se preocupar com vários fatores. Existe todo um processo indicado para ser realizado para que a sucessão aconteça de forma organizada, sem conflitos e problemas maiores entre as famílias. Uma dessas etapas é o planejamento.
São vários fatores determinantes para uma boa sucessão, como o papel de liderança, planejamento, conflitos familiares, gestão e a tecnologia no processo de sucessão. Para um dos principais especialistas do tema do país, Francisco Vila, consultor internacional e diretor da Sociedade Rural Brasileira, o planejamento é considerada etapa primordial. “É preciso fazer uma análise se questionando “onde eu estou, para onde eu pretendo ir, qual seria o caminho mais fácil e mais eficiente de se fazer isso. Qual é o meu negócio? Eu tenho café, eu tenho leite, eu tenho gado, eu tenho milho, eu tenho uma coisa só, ou eu tenho três coisas? Qual o perfil do meu negócio?”. Todos esses fatores precisam ser levados em consideração antes de se iniciar de fato a sucessão. Além disso, outros pontos importantes que precisam ser discutidos, são: “Como é a família? Quem é da família? Quantas pessoas fazem parte dessa família? Em que estado de crescimento sobre uma família nós estamos? O avô ainda existe? Já temos netos?”, indaga Vila, dando dicas das análises necessárias para iniciar um planejamento sucessório.
Mariely Biff, outra especialista nacional na área e consultora de sucessão familiar, afirma que a sucessão é um processo gradativo, então exige planejamento, preparo, não é do dia para a noite. “Precisamos que a família esteja madura, preparada. Entender o papel de cada negócio é o primeiro passo quando eu penso em planejar alguma coisa para sucessão, então cada um entender seu papel é primordial. Saber se o filho que está ali é o jovem que ali dentro da família quer conduzir o negócio, se ele tem perfil, se tem vontade de conduzir o negócio é importante. Venho de uma família de produtores rurais, mas eu não sou sucessora do negócio da minha família, então eu tenho vontade, eu tenho perfil? Se eu não tenho, o que é que a gente vai fazer? Pra se planejar eu preciso analisar os cenários, então esse é o primeiro ponto para começar a sucessão”, destaca.
Para o produtor e cafeicultor, Lucas Venturim, da Fazenda Venturim, o tema da sucessão familiar é importante para todas as cadeias, inclusive para a rural, para a cafeicultura, área onde atuam. “Tenho falado sempre que muitas vezes a pessoa só lembra da necessidade de fazer a sucessão pensando no negócio, mas esquecem de pensar nas necessidades das pessoas, e no meio rural é muito comum o pai querer que o filho assuma, que continue com a propriedade pois ele não quer vender, só que ele esquece que o filho quer um futuro melhor para ele. Se ele vê o pai o tempo todo quebrando a cabeça e dizendo que o café não consegue se pagar, pagar as contas, demonstrando que sempre está preocupado, com problemas financeiros, que a cafeicultura é uma atividade que não está rentabilizando direito, essa criança não vai crescer com o intuito de continuar nessa atividade, então as pessoas tem que pensar um pouco mais em sustentabilidade da cadeia, analisando do ponto de vista da sustentabilidade ambiental. Tem que ser um tripé: sustentabilidade ambiental, social e econômica. Se o filho não tiver condição de criar a família dele com dignidade, de viver do sustento da terra com dignidade, há chances de não dar certo, dele não querer continuar na atividade. A sucessão é importante sim, mas tem que ser tratada num momento anterior, tem que ser planejada”, pontuou Venturim.
Lucas conta que a sucessão na família deles foi um caminho atípico. “Meu pai disse que precisávamos assumir o negócio porque ele não tinha condições mais de tocar a propriedade e isso aconteceu de forma bem precoce. Meu irmão Isaac, que tinha 17 anos quando assumiu a fazenda, nem dirigia, e precisou de uma adaptação muito rápida, drástica naquele momento pra continuar fazendo as coisas rodarem no modelo tradicional que era. Depois fomos buscando mais, eu me formei e fui ajudar, e vimos que para que aquela mesma propriedade continuasse provendo renda suficiente para sustentar todas as famílias, já que meu pai tem três filhos e a renda tem que dar pra todo mundo, precisaríamos agregar valor ao produto, produzir mais, ter mais receita, e aí fomos trabalhar na cadeia do café especial como uma forma de agregar renda, porque no café tradicional, o commodity, a margem era muito estreita e nossa propriedade não é grande, então não tinha condição de agregar renda suficiente para todos os filhos para que a gente pudesse criar nossas famílias com dignidade a partir do sustento gerado pela fazenda”, lembra o produtor.
Para ele, a sucessão familiar é um tema complexo, mas que infelizmente os produtores de forma geral só pensam em fazer quando já estão sem saúde para tocar a atividade ou sem motivação, e aí é que eles vão querer passar com os filhos, mas isso tem que ser tratado desde antes, inclusive desde criança. “No nosso caso hoje, nós já assumimos há bastante tempo, então os nossos filhos frequentam a propriedade desde criança, eles veem a gente fazendo o que faz com prazer, com paixão, com dedicação, então mesmo que ainda é cedo para prever, mas acredito muito que eles vão ter interesse sim em continuar na atividade. Durante a infância, eles estão vendo que isso dá prazer pra gente, assim como nós víamos que isso dava prazer para os nossos pais também, mesmo que não dava muita renda, mas que dava prazer. Acho que esse passo é fundamental para criar consciência nas pessoas, para que desde criança elas tenham prazer, que tenham interesse em continuar, perceber que é uma atividade rentável que permita que as pessoas vivam no campo mas não isoladas do mundo, que vivam na fazenda conectadas, já que hoje em dia a internet possibilita isso, com condições dignas para que um adolescente, por exemplo, esteja conectado com o mundo, esteja estudando, vendo tudo o que está acontecendo e que hoje em dia tem condições de isso acontecer de uma forma muito mais viável, mas acessível para todo mundo”, diz Lucas Venturim.
Francisco Vila lembra que “durante 20 anos os pais disseram que trabalhar no campo é muito duro, não dá dinheiro, tem que trabalhar sábado e domingo, ninguém respeita o produtor. E depois, quando o filho sai da escola, ele espera que esse filho entre no negócio que ele há 20 anos falava que era uma coisa muito difícil de fazer. Nos últimos anos, essa conversa mudou por vários motivos: primeiro houve naturalmente um trabalho desse tema na mídia, nas associações e nas reuniões. O outro ponto muito positivo foi a urbanização do campo. Quem morava ou mora 100 km da costa, até chegar na praia, num shopping center, ele precisava quase de duas, três horas. Hoje não precisa mais ir até um local comprar algo porque você encomenda via internet. As estradas são melhores, a motorização é melhor. Hoje os meninos podem ter aulas em casa, não precisam necessariamente ir para a escola, para a universidade, então essa total mobilização da sociedade trabalha muito em favor de aproximar os interesses e os perfis das duas gerações”, destaca o consultor.
Alexandra Nicoli, produtora rural de Jaguaré, no norte do Espírito Santo, onde a família reside há 37 anos, trabalha, há 13 anos, com os pais, os irmãos Jarbas Filho, que desde sempre trabalha com a família, e Estefania Nicoli que está junto da família nos trabalhos há uns quatro anos. Juntos eles administram a fazenda Nicoli Café. Formada em Medicina Veterinária e pós graduada, e a irmã formada em Arquitetura e também pós graduada, apesar da formação na área do agronegócio, Alexandra acabou se voltando mais para a área administrativa, de gestão da fazenda, assim como também fez a irmã, que saiu da Arquitetura para a área do agronegócio. “Como trabalhamos com a família desde muito tempo, fomos aprendendo como fazer o trabalho dia após dia. O que eu acredito da sucessão familiar é que não é uma situação que acontece da noite para o dia e que os filhos precisam gostar da área que vai suceder ou que está sucedendo que é o nosso caso. Eu e meus irmãos estamos sucedendo nossos pais, já que eles continuam trabalhando aqui com a gente e vamos aprendendo com eles”, explica Alexandra.
Alexandra diz ainda que o maior anseio dela é fazer o negócio da família ter tanto sucesso ou mais que os pais tiveram. “Evidente que são realidades e dificuldades diferentes da época de quando meu pai começou e de como eu e meu irmão pegamos, são dificuldades distintas, e eu e meus irmãos sempre falamos sobre “como não deixar a peteca cair e permanecer no negócio”. Estamos em processo de sucessão, viemos aprendendo sobre todas as áreas, dominando mais, buscando informação, tecnologia e tudo o que tem ao nosso redor para agregar mais ao nosso trabalho, para nos ajudar com as dificuldades que existem no agronegócio em todos os aspectos, sejam os burocráticos e práticos também. Então ainda estamos sucedendo e espero muito tempo suceder. Falo com meu pai e minha mãe que não espero que eles cheguem pra mim da noite pro dia e falem “hoje não vou mais trabalhar”, nem pela vontade deles e nem por uma outra situação, o que desejo mesmo é que eles estejam com a gente no trabalho, dando opinião, nos ajudando, dando orientações, porque não é fácil já que temos muito entraves. Trabalhar com a família geralmente existem brigas, mas ficar com raiva e brigar por causa de negócio não é permitido. A gente pode brigar e discordar, mas romper com a família não. Minha mãe desde cedo colocou nosso pezinho no chão e falou “a família é mais importante ainda, uma família forte pode construir e reconstruir negócios, um negócio forte não pode jamais desfazer uma família”, afirma Alexandra.
Marielly Biff diz que, para a maioria das pessoas, uma das grandes dificuldades na sucessão, é entender que a família é um núcleo e o negócio é outro. “É entender que na sua casa você não vai conversar sobre assuntos de negócio na mesa de jantar e que no escritório você não vai ficar conversando sobre assuntos de família. Se você pegar a 20, 15, 10 anos atrás e até hoje, ainda há muitas propriedades que fazem do negócio uma extensão da família, como a conta, a pessoa física. O produtor ainda paga o insumo, a escola do filho, as contas de casa sem separação do dinheiro, e isso é muito ruim. Existem várias coisas que contribuem para que esse processo ocorra em harmonia, para que a gente evite alguns conflitos familiares. O primeiro é que para uma comunicação assertiva você precisar deixar claro o que você espera. A gente sempre fala em transparência nas expectativas. Quando você deixa muito bem alinhado o que você espera que o outro espera de você, você consegue evitar muitos conflitos, isso não só na sucessão, como em qualquer negócio”, afirma a consultora.
Biff ainda diz que outra coisa é comum é a questão do conflito de gerações. “O sucessor fala que é o pai que não ouve, o pai fala que o sucessor não ouve, então a gente fica ali sempre naquele impasse. Eu sempre falo que as duas gerações tem muitas qualidades, pois o titular que é o gestor, o pai, ele tem experiência em crise, passou por momentos muito difíceis, então já tem uma bagagem muito considerável que tem que ser valorizada. E o sucessor tem toda a vivência de inovação, tecnologia. Ele está no mercado e é ele quem vai conduzir daqui para frente, então ele está nesse novo padrão de negócio, está com a mente mais aberta. Na minha opinião, temos que aproveitar o que os dois têm de bom, usar isso para potencializar essas qualidades e somar para que a empresa cresça cada vez mais. Não precisa tirar o pai de cena e não precisa tirar o filho de cena, pois essa sinergia que é complementar e faz com que a empresa cresça cada vez mais. Outra coisa que a gente também pode usar, mesmo que informalmente, mas que ajuda a diminuir os conflitos familiares, é a criação de um protocolo familiar, de estabelecer regras. Sempre falo que as regras têm que ser criadas antes que sejam necessárias, porque depois que você precisa impor, daí você já tem a família toda brigando, entrando em conflito. Crie regras para a empresa. Você evita muitas questões de tensões familiares por conta de ego, ciúme, ressentimento, aí acaba tendo essa mistura. É uma questão da própria estrutura mesmo, pois quando você tem dentro da organização a participação excessiva de algum membro, isso também pode causar um conflito familiar, ou quando você tem um membro que é muito fechado. Se você tem um protocolo que define regras de entrada, de saída, de retirada de dividendos, você elimina vários conflitos, então consegue conduzir o negócio com essa separação da família, com esse núcleo muito melhor separado”, detalha Marielly.
Em Jaguaré, Alexandra diz que a maior dificuldade deles hoje em relação à sucessão é a quebra de paradigmas. “Meu pai acredita muito na agricultura horizontal, que você tem que ter mais terra para produzir mais. Já eu e meu irmão acreditamos na agricultura vertical, que é aquela questão de produtividade, eu preciso aumentar a produtividade das minhas áreas, porque a terra se tornou um ativo muito caro nas nossas regiões do Espírito Santo, comprar um alqueire de terra hoje é caríssimo e se a gente for fazer um comparativo do valor do café por exemplo, hoje, comparado com 15, 20 anos quando meu pai começou, o produto perdeu o seu valor. Então conseguirmos otimizar o trabalho e colocar as minhas lavouras para produzir, essa é minha maior dificuldade e o maior paradigma com nosso pai”, diz a produtora.
Outro exemplo de quem já passa pela sucessão familiar é da produtora Fernanda Marin Permanhane, da Fazenda Vovô Délio, em São Mateus, que assumiu cargos nos negócios da família há oito anos, logo após ter se formado. “Meu pai sempre me incentivou a estudar e fazer cursos para me preparar melhor. Então comecei aprendendo um pouco de cada área, e já no primeiro ano assumi a parte de vendas, e depois o financeiro. Fui aprender mais sobre sucessão familiar no Programa CNA Jovem, da CNA, e ali vi que vários outros jovens também passavam pelos mesmos desafios que eu. Por trabalhar em família pode haver conflitos, como qualquer empresa, mas precisamos saber gerir ainda melhor para que isso não afete negativamente as relações familiares. Aos poucos fomos nos organizando, definindo as prioridades a longo prazo, as funções de cada um no negócio, o que cada um almeja e alinhando com o futuro da fazenda. Ainda não temos nosso plano de sucessão finalizado, mas termos conhecimento sobre o assunto, nos possibilitou avançar e evitar desentendimentos futuros. Vemos muitas famílias que poderiam ter evitado conflitos se tivessem feito o planejamento da sucessão. Sucessão é sinônimo de continuidade, modernização do negócio e harmonia na família. Independentemente da idade, todos os gestores rurais precisam estar abertos para debater o assunto”, analisa Fernanda.
Para os produtores que estão passando pelo momento de transição, e as vezes passam por alguns conflitos, Francisco Vila diz que não existe receita de bolo certa para essa etapa, mas acredita que a mãe possa ter um papel essencial neste momento de planejar a sucessão. “A mãe conhece o pai, a mãe conhece os filhos, a mãe sabe o que todo mundo pensa, o que não pensa, onde pode confiar, ela consegue juntar e entender o que nós entendemos que são grandes conflitos, quando na verdade não são. Como o empresário tem que trazer os nossos colaboradores mais perto de nós, é o mesmo processo que precisa ser feito: trazer os filhos para perto. A sucessão é composta por três pilares: a família, o negócio e a lei”, finaliza Vila.
Redação Campo Vivo