ARTIGO: Mercado de capitais dita futuro do crédito agrícola no Brasil na esteira das agfintechs

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Por Octaciano Neto, Guilherme Raucci e Tiago Guitián dos Reis

Enquanto a dependência dos recursos subsidiados e barter tende a diminuir, o agro pode assistir à fusão das agfintechs

Até 1970, o Brasil era importador líquido de grãos, quando a população girava em torno de 93 milhões de habitantes. Hoje, garante comida na mesa de cerca de 10% da população mundial e já tem outros desafios por vir. O mundo precisa produzir alimentos para 1 bilhão de pessoas que ainda passam fome e 2 bilhões que nascerão até 2050 e, se o Brasil quiser se manter na fronteira do abastecimento, nosso produtor rural vai precisar de um recurso escasso nos cofres públicos: o crédito.

No início do século, quando a área de crédito dos bancos levava um cliente do agronegócio, a área de risco “expulsava” todos da sala. Historicamente, e inacreditavelmente, o mercado financeiro — com exceção do Banco do Brasil e das cooperativas de crédito — vinha dedicando pouca atenção ao produtor rural, tanto na área de crédito quanto de capitais. O mercado de ações, por si só, é incoerente até hoje, com o agronegócio representando 27% do PIB nacional e menos de 5% do valor de mercado na B3.

Falando do crédito subsidiado, o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) foi criado pela lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, e tem entre seus principais agentes justamente os bancos e as cooperativas de crédito. É deles o propósito de fornecer capital aos produtores rurais a juros baixos e ajudar a financiar a produção e os maquinários agrícolas, bem como custos de operação e comercialização de produtos agropecuários.

Ao olharmos o contexto histórico, é fundamental destacar e valorizar os avanços de desenho desta política pública. O financiamento com subsídios do orçamento federal foram e continuam sendo fundamentais para a agricultura brasileira. Vale destacar o papel do Ministério da Agricultura, da Secretaria de Política Agrícola/ME e da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) nesse cenário.

No entanto, há muito tempo esses recursos isolados são insuficientes. Com a deterioração do ambiente fiscal do governo brasileiro, há uma redução (proporcional) das subvenções do crédito agrícola (subsídios) ao total da carteira de crédito rural. Do outro lado, a demanda por crédito só aumenta.

Insuficiência crônica

A maior evidência da insuficiência é o surgimento das operações de barter. Barter é troca, escambo, permuta. Em nenhum outro setor da economia existe uma política de escambo tão relevante quanto no agro. Surgiu no Brasil nos anos 90 e foi “exportada” para a Argentina e Leste Europeu. Curiosamente, o barter só existe onde não tem mercado de capitais desenvolvido. É uma disfunção do mercado financeiro.

Hoje, possivelmente, a carteira de crédito da agropecuária é de R$ 750 bilhões, sendo R$ 250 são originadas das operações de barter, R$ 250 bilhões aplicado pelos bancos com recursos livres e não controlados pelo governo federal e R$ 250 bilhões via Plano Safra.

Mas fato é que o crédito subsidiado não crescerá e que as operações de barter são caras e, na maioria das vezes, pouco transparentes quanto ao custo efetivo que o produtor está pagando de juros.

O único caminho é, portanto, crescer via mercado financeiro, com crédito de recursos não controlados pelo governo federal e do mercado de capitais. Os mercados de capitais, crédito, monetário e de câmbio têm regulamentação e fiscalização compartilhada entre Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e Banco Central. E todos são segmentos do mercado financeiro.

Mercado de crédito e mercado de capitais

A principal diferença entre o mercado de crédito e o mercado de capitais, é que no primeiro caso, a instituição financeira capta o dinheiro do poupador e empresta para o tomador. A diferença entre as taxas (spread) é do banco, que paga seus custos e fica com o lucro.

No caso do mercado de capitais, a instituição financeira atua como prestadora de serviço. O tomador oferece um rendimento direto ao poupador e a instituição financeira organiza o contato e cobra pelo serviço.

No mercado de capitais, empresas precisam de dinheiro (capital) para financiar os seus projetos e usam a negociação de ativos, sejam ações e/ou títulos de dívida para esse fim. Leonardo Faccini, da CVM, crava: “o mercado de capitais aglutina e aloca a poupança nacional na capitalização das empresas, impulsionando atividade econômica e a geração de empregos”. Os valores mobiliários mais conhecidos: ações, debêntures, fundos (FIIs, FDCIs, Fiagros) e alguns títulos de crédito (CRA, LCA, etc).

Em construção, a ponte campo-cidade

No Brasil, a população tem tradição em olhar para a previdência pública. Nos últimos anos, no entanto, muita gente tem organizado a sua poupança e escolhido aplicar no mercado de capitais. É o modelo previdenciário (reserva financeira que se faz no presente pensando no futuro) privado. Somente nos FIIs, os investidores eram 10 mil em 2010 e hoje passam de 1,6 milhão. Uma mudança clara de comportamento, onde os poupadores estão vendo que o mercado de capitais pode ser a melhor aplicação para sua poupança e de rendimentos para a aposentadoria.

Veremos uma ampliação expressiva do mercado financeiro no financiamento do agronegócio nos próximos anos. Até 2030, 50% do financiamento do campo será via mercado financeiro, com funding do mercado de crédito e sobretudo do mercado de capitais. Considerando a taxa de crescimento de 4,7% do PIB da agropecuária (dentro da porteira) entre 2000 e 2019, teremos uma carteira de crédito agrícola superior a R$ 1,1 trilhão em 2030.

Assim, o volume necessário para financiar o campo brasileiro, ancorado no mercado financeiro (sem considerar os recursos controlados), passará de R$ 500 bilhões, dobrando, portanto, em nove anos. Um baita desafio e uma gigantesca oportunidade.

Isso se tornará realidade por diversas razões. Em primeiro lugar, o setor evoluiu, tanto no campo com tecnologia, biologia, química e mecanização, quanto em governança (certificação, cuidados ambientais, balanço auditado, área de RI — agenda dos grandes produtores, indústrias, cooperativas e revendas, o que aumenta a segurança do poupador em investir no setor.

Além disso, mais poupadores brasileiros estão investindo no mercado de capitais, ganhando confiança e planejando melhor a sua aposentadoria. Isso favorece o surgimento de cada vez mais profissionais que se desenvolvem e que buscam aproximar o mercado de capitais (“Faria Lima”) do mundo rural brasileiro, levando informação confiável e segura para todos os lados.

No tocante à cadeia do agronegócio, as indústrias de insumos, cooperativas e revendas irão focar, cada vez mais, em seu core business, possibilitando maior eficiência na operação e deixando o financiamento do produtor para o mercado financeiro.

O modelo tradicional no qual o produtor dá garantias de 130%-150% do valor financiado e toma o crédito é operado com fundamentos nas garantias e não na operação das fazendas. Ele tende a desconsiderar o histórico deste produtor, o potencial de crescimento dele, os níveis de produtividade da sua região, sua experiência. Fatores que certamente precisariam fazer parte e sentido de uma análise de crédito criteriosa.

As agfintechs nessa equação

No novo modelo, as tecnologias digitais irão acelerar a análise de crédito, tornando-a mais segura e criará uma nova fronteira de atuação. A maior parte das agfintechs que já estão no mercado, ajudam a resolver dores pontuais dos produtores.

O próximo passo será a construção de uma esteira do processo de concessão de crédito, que incluirá a análise de crédito, formalização contratual, monitoramento da produção via satélite, formalização e controle de gestão de garantia e inteligência artificial para previsão de produtividade.

Isso tornará a concessão de crédito mais fluída e formará canais de distribuição que chegarão ao lado do produtor com mais presteza e facilidade. Se tivermos um movimento de fusão/consolidação das agfintechs, acelerará muito o processo.

Evidentemente que existem desafios, tais como, a elevação do custo operacional dos bancos decorrente da elevação da taxa Selic, a individualização o risco, e a correspondente definição das taxas de juros por produtor por operação, diminuição dos custos na estruturação das operações do mercado de capitais e a redução da assimetria de mercado.

Neste último ponto, é necessário ter mais informação sobre a operação nas propriedades rurais. As tecnologias digitais irão ajudar. Sempre foi muito mais fácil pegar uma garantia de um terreno ou um prédio urbano do que uma fazenda.

Só o tempo dirá, mas estamos convencidos… O crédito sempre foi importante para o produtor rural. Agora, com todo o desenvolvimento e amadurecimento do mercado de capitais e do próprio produtor, esse casamento será fortalecido. E, definitivamente, o mercado de capitais será uma alavanca primordial para o agronegócio brasileiro.

Octaciano Neto é Diretor de Agronegócio da EloGroup

Guilherme Raucci é Gerente de Sustentabilidade Digital na Syngenta

Tiago Reis é fundador da Suno Research

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