Propriedades rurais e produção de água
OSVALDO FERREIRA VALENTE
A escassez de água virou uma preocupação mundial e falar dela já é também mania nacional. Ainda mais que temos o caso extremo do semi-árido nordestino e a polêmica da transposição do rio São Francisco. Mas pouco se discute o ciclo hidrológico e o processamento da água de chuva como responsáveis pela quantidade disponível em lençóis subterrâneos, córregos, ribeirões e rios. E quem assume esse processamento é a bacia hidrográfica, que recebe água de chuva com determinada qualidade e entrega outra com qualidade resultante da interação com os diversos componentes ambientais da bacia, que é, assim, uma verdadeira fábrica natural de água.
Mas o que têm as propriedades rurais com isso? Têm e muito, já que ocupam as bacias e hospedam a maioria das nascentes dos rios brasileiros. No caso da bacia do rio Doce, elas hospedam, com certeza, mais de 85% delas. Apesar disso, e pela visão eminentemente urbana que temos da água, as propriedades rurais e seus donos ainda não são considerados parceiros prioritários nos planos de conservação de recursos hídricos. E mesmo tendo plena consciência da importância de suas hóspedes, não podem ficar com todas as despesas resultantes do acolhimento dessa entidade oficial, pois a água, e conseqüentemente as nascentes, são de domínio público. A visão urbana não pode deixar de considerar, portanto, que as propriedades rurais são fundamentais na regulação da vazão dos rios. Se elas controlarem as enxurradas poderão exercer dois benefícios: primeiro, contribuir para a diminuição de cheias, como as de Governador Valadares, por exemplo; e, segundo, armazenar a água em lençóis subterrâneos e cedê-la lentamente aos córregos e rios, através das nascentes, ou disponibilizá-la nos poços furados e perfurados.
O produtor rural, principalmente o de cabeceira, sabe que é o primeiro a sofrer com a diminuição do armazenamento de água dos lençóis, principalmente dos freáticos, os maiores responsáveis pela manutenção das nascentes e dos poços de pequenas profundidades e, também os mais sensíveis às atividades exercidas nas propriedades. Além disso, o produtor rural de cabeceira não pode contar com córregos e rios de maiores vazões para a garantia do suprimento necessário de água às suas atividades. Se as águas de chuvas forem drenadas rapidamente pelas enxurradas, pouco ou nada sobrará para sustentar as nascentes nos períodos de estiagens.
Apesar de consciente da importância da água, o produtor rural sofre mesmo é com as obrigações ambientais relacionadas com os recursos hídricos. No caso da conservação de nascentes, as exigências de matas ciliares e de topos de morros, não são suficientes para garantir quantidade de água. Exigir que ele cerque sua nascente e não use a faixa ciliar não é garantia de suprimento de quantidade de água, pois o problema pode estar em uma encosta usada como pastagem e que não se encontra restringida em nenhum instrumento legal. O topo de morro, no final da encosta, por outro lado, não é a única área de recarga dos lençóis. Esses conceitos passam a ser propagados sem nenhuma base científica e acabam prejudicando a eficiência do setor. Outra coisa que incomoda o produtor rural é que, ao ser cadastrado pelo comitê de bacia, ele só o é como consumidor e potencial pagador. Ninguém se interessa pelo seu papel de produtor de água.
Mas o que eles sentem mesmo, na grande maioria dos casos, são carências de informações técnicas e de recursos financeiros para atuarem na máxima retenção dos volumes de chuvas recebidos anualmente e que são as únicas fontes de matéria prima para as produtividades das nascentes. No caso da bacia do Doce, as chuvas anuais têm média ponderada em torno de
As propriedades rurais podem, assim, virar verdadeiras produtoras de água. Para isso, os Comitês da bacia do rio Doce não podem considerar os seus proprietários apenas como consumidores, pois querendo ou não, eles são responsáveis pela manutenção dos reservatórios naturais de água que estão debaixo da superfície de suas propriedades e pelas respectivas nascentes.
OSVALDO FERREIRA VALENTE é engenheiro florestal, professor titular aposentado
da Universidade Federal de Viçosa e especialista em hidrologia e manejo de pequenas
bacias hidrográficas (conservação de nascentes) – ovalente@tdnet.com.br