Mesmo que publicamente considere “arbitrária, desnecessária, desproporcional e injustificada” a decisão da União Européia de impor limitações à exportação de carne bovina, o governo brasileiro decidiu, nos bastidores, fazer seu “dever de casa” para oferecer uma lista de fazendas habilitadas a fornecer bois ao bloco e criar confiança no sistema de rastreamento do gado (Sisbov). Brasília deixou claro aos europeus, entretanto, sua disposição de questionar na Organização Mundial do Comércio (OMC) os aspectos técnicos e jurídicos de qualquer restrição que considerar exagerada.
Em dura carta enviada ao Ministério da Agricultura, a UE lançou a idéia de limitar a lista a 3% das 10 mil propriedades até então certificadas pelo novo Sisbov, que vigora a partir de janeiro. Nesse caso, apenas 300 fazendas seriam autorizadas, como revelou ontem o Valor. O governo não aceitará a recomendação nem adotará uma auto-limitação do número de fazendas. E acredita que a UE não insistirá nesses valores, já que a decisão da Comissão Européia foi mais branda que a correspondência preliminar.
A estratégia do governo é aguardar a decisão da UE, em março, sobre o número total de fazendas que serão habilitadas. Se considerar a restrição abusiva, questionará a medida no Comitê sobre Medidas Sanitárias e Fitossanitárias da OMC (SPS), em reunião marcada para abril. Se a UE insistir numa medida sem sustentação técnica e jurídica, o caso será levado à OMC. “As medidas são extremamente duras, mas respeitamos a exigência que este mercado nos faz porque é equivalente ao que eles praticam”, disse o secretário de Defesa Agropecuária, Inácio Kroetz. “Temos que provar que nosso trabalho é bom. E isso se faz com procedimentos da mais qualidade”.
Para cumprir as exigências da UE até o prazo fixado em 31 de janeiro, o Ministério da Agricultura enfrentará enormes dificuldades. Terá que patrocinar um grande mutirão nos seis Estados para fazer uma “pente fino” nas fazendas já certificadas pelos critérios do novo Sisbov. Depois, terá que auditar o trabalho a cargo das secretarias estaduais de Agricultura.
E justamente em janeiro, quando boa parte dos serviços de defesa estão em férias. Soma-se a isso as ingerências políticas a que os fiscais estaduais estarão expostos, já que eles terão o poder de decidir quais fazendas serão habilitadas. Para tentar facilitar, o ministério começará o “pente fino” nas fazendas localizadas em áreas mais próximas dos frigoríficos autorizados a vender para a UE em parte de Mato Grosso, parte de Minas Gerais, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Espírito Santo. O governo estima haver 7 mil propriedades certificadas nesses seis Estados.
Um fator positivo é o bom momento do mercado de gado, já que há uma forte demanda no Brasil e no exterior. Talvez isso explique a reação comedida de pecuaristas e dos exportadores. “Acho que foram razoáveis porque não questionaram nossa carne e o Sisbov pode melhorar”, disse Antenor Nogueira, do Fórum de Pecuária de Corte da CNA.
O presidente Abiec, Pratini de Moraes, afirmou que a decisão da UE “não altera substancialmente as normas vigentes para a exportação de carne fresca brasileira para aquele mercado”. Em nota, a Abiec argumentou que a decisão “está muito longe de atender às pressões restritivas” de produtores irlandeses e ingleses. Pratini disse, entretanto, que “restrições adicionais” justificariam questionar a UE na OMC. “Estamos trabalhando em colaboração com o ministério para viabilizar as regras da rastreabilidade”. Sobre a limitação a apenas 300 fazendas, Pratini disse ser um número “virtual” por não constar da resolução da UE. Mas admitiu que, caso seja real, seria “inviável e juridicamente impossível”. Para ele, seria “inaceitável” a cifra. “Essa é uma proposta de quem não conhece o Brasil”.
No Comitê Veterinário da UE, bombardeado por pressões políticas, o placar pela ampliação de restrições contra a carne brasileira foi de 26 a 1. E o voto solitário foi da Irlanda, que queria proibição total mesmo sem conseguir evitar a doença da “vaca louca” em seu território. A Irlanda voltou ontem a pedir oficialmente o banimento de toda a carne brasileira
Em março, uma missão do Food and Veterinary Office (FVO) europeu estará no Brasil para verificar se as exigências foram cumpridas. E Bruxelas acena com a possibilidade de Brasília submeter nova lista a partir de maio, eventualmente aumentando ou alterando a composição. Dependerá da capacidade brasileira de assegurar que carne de gado sem febre aftosa é exportada para os 27 países do bloco.
Na carta enviada pela UE ao governo brasileiro, fica claro que o bloco poderia ter fechado o mercado se quisesse, já que persistiram deficiências encontradas no controle de identificação e movimento de animais no país e das repetidas queixas desde 2003.
Para certos analistas, a articulação diplomática do Brasil nos últimos dias ajudou a refrear o tamanho do endurecimento contra o produto brasileiro.
Para a indústria da Europa, que necessita da importação, “o nível da crueldade da restrição é enorme”. Jean-Luc Meriau, secretário-geral da Associação Européia de Comerciantes de Carnes (UECBV), nota que há 6 mil propriedades registradas no Sisbov nos Estados autorizados a exportar à UE. Uma limitação a 300 reduziria em 87% o potencial de exportação, diz.
Basta um rápido calculo sobre o impacto da medida, levando em conta uma fazenda média no Brasil com 4,5 mil a 6 mil animais. Multiplicando por 300, isso daria 1,5 milhão de animais, comparado aos 2,7 milhões abatidos em 2006 para atender a demanda européia da carne brasileira. Assim, só cerca de 40% da demanda poderia ser atendida, num primeiro momento.
A primeira conseqüência dentro do Brasil deve ser o aumento de preço do gado das regiões aprovadas para a UE. Para Pratini de Moraes, a medida deve criar um “diferencial enorme de preços”. Um analista observou que a fazenda habilitada a fornecer para a UE também terá custos maiores, o que justifica o preço superior em relação a outras que não estão aptas.
Valor Econômico